Sete meses depois de a Organização Mundial da SaĂșde (OMS) declarar a pandemia da covid-19, ainda sobram dĂșvidas sobre a doença, mas uma certeza é incontestĂĄvel: a de que, para o Sars-CoV-2, não existem fronteiras no corpo humano. Se, inicialmente, acreditava-se que o micro-organismo era responsĂĄvel por uma sĂndrome respiratória, logo ficou claro que os efeitos do novo coronavĂrus não paravam nos pulmões. Durante ou mesmo depois da fase aguda da infecção, outros órgãos podem ser afetados, não apenas devido à hiperinflamação causada pela resposta exagerada do sistema imunológico, mas pela ação direta de um patógeno sobre o qual pouco se sabe.
"É muito comum recebermos pacientes com manifestações extrapulmonares, como cefaleia persistente, perda de olfato, alteração de paladar, dores musculares e nas articulações, além de neuropatia periférica e complicações infecciosas", atesta a médica Adele Vasconcelos, coordenadora da EmergĂȘncia do Hospital Santa Marta, em BrasĂlia. "No começo, a gente achava que era uma coisa pulmonar. Mas é uma doença sistĂȘmica", diz o infectologista Jorge Casseb, professor e pesquisador do Instituto de Medicina Tropical da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (USP).
Para o vĂrus, poder se espalhar por vĂĄrios tipos de células é uma vantagem evolutiva, explica o vice-presidente da Sociedade Brasileira de Virologia e pesquisador da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), FlĂĄvio Guimarães da Fonseca. "Ele fica menos especialista, e isso amplia a capacidade de infectar diferentes tipos celulares", afirma. Desde os primeiros estudos sobre o Sars-CoV-2, o micro-organismo jĂĄ foi detectado, além do sistema respiratório, em tecidos do coração, rins, fĂgado, intestino, estômago e cérebro. Embora não haja relatos de ter sido encontrado no pâncreas, foram observados casos de pancreatite aguda em alguns pacientes, e suspeita-se de que o vĂrus também possa desencadear diabetes, doença intimamente associada a esse órgão.
Receptor espalhado
O sucesso infeccioso do Sars-CoV-2 pode ser explicado pela enzima conversora da angiotensina 2 (ACE2), receptor presente por todo o organismo. Como um mecanismo de chave e fechadura, a proteĂna spike do coronavĂrus se liga ao ACE2 para conseguir entrar nas células. DaĂ a facilidade de infectar diversos tecidos e órgãos.
No fim de agosto, um estudo de pesquisadores da Universidade de São Paulo (USP) publicado na revista The Lancet mostrou, pela primeira vez, a presença no Sars-CoV-2 no tecido cardĂaco. O artigo é o relato do caso de uma criança de 11 anos com sĂndrome inflamatória multissistĂȘmica relacionada à covid-19. Ela desenvolveu insuficiĂȘncia cardĂaca e morreu no dia seguinte à internação. A autópsia revelou o vĂrus nos pulmões e no coração da vĂtima. "Apesar da evidente inflamação sistĂȘmica e da progressão final para falĂȘncia de mĂșltiplos órgãos, os achados clĂnicos, ecocardiogrĂĄficos e laboratoriais indicaram fortemente que a insuficiĂȘncia cardĂaca foi o principal determinante do desfecho fatal", escreveram os autores.
De acordo com o estudo, a autópsia também apontou miocardite, pericardite e endocardite, com inflamação intensa e necrose de fibras musculares. Os pesquisadores notaram, também, que a infecção das células que revestem o endocĂĄrdio pode fazer com que o vĂrus se dissemine para outros órgãos, pela corrente sanguĂnea. Ainda não se sabe se os danos cardĂacos, detectados em outros pacientes mundo afora, são passageiros ou persistentes. "Além dos efeitos agudos, precisamos aprender mais sobre as implicações de longo prazo do vĂrus no coração", observa Kirk U. Knowlton, do Instituto Cardiológico Intermoutain em Salt Lake City, nos EUA, que, recentemente, publicou um artigo baseado em descobertas de mais de 100 estudos sobre o tema.
Doenças neurológicas
Logo no inĂcio da pandemia, começaram a surgir relatos de pacientes que perderam o olfato e o paladar, evidenciando que o vĂrus também impacta o sistema nervoso central (SNC). Porém, as manifestações não ficaram por aĂ. "SĂndrome de Guillain-Barré, encefalomielite, neuropatias periféricas isoladas, AVC, alterações funcionais e cognitivas", enumera Augusto César Penalva de Oliveira, pesquisador do Instituto de Infectologia EmĂlio Ribas, de São Paulo. O médico estĂĄ à frente de um estudo que pretende avaliar, a longo prazo, os efeitos do Sars-CoV-2 no cérebro e no SNC. Atualmente, hĂĄ 47 pacientes na pesquisa, mas a ideia é chegar a 100. Dos voluntĂĄrios, dois desenvolveram parkinsonismo (sintomas da doença de Parkinson).
O pesquisador conta que todos os sete coronavĂrus humanos são capazes de contaminar o SNC, embora a maioria não cause danos. Nas epidemias de Sars-CoV (2002/2003) e Mers (2012), os primos mais próximos do Sars-CoV-2, porém, foram detectadas doenças neurológicas. A interrupção das pesquisas pós-surtos impede saber se os efeitos passaram ou se mantiveram a longo prazo. Uma dica de que os sintomas podem persistir, diz Oliveira, é o modelo experimental de rato utilizado no estudo de um tipo de coronavĂrus causador de doença respiratória benigna. No animal, o vĂrus causa encefalomielite, inflamação do cérebro e da medula espinal. A condição se mantém até o rato ser sacrificado, um ano depois da infecção.
"A gente tem visto manifestações neurológicas tanto na fase aguda quanto mais tardiamente", conta o infectologista. Uma paciente do estudo teve quadro respiratório leve e, dois meses depois, começou a apresentar problemas de memória e no sistema motor. Passados trĂȘs meses da infecção inicial, os médicos coletaram o lĂquor — fluido que faz uma "limpeza" do cérebro e circula pela medula espinhal. O Sars-CoV-2 estava lĂĄ. "Isso indica que hĂĄ uma persistĂȘncia do vĂrus no sistema nervoso central. Não sabemos o quanto de persistĂȘncia. Mas, pelo modelo de rato, a gente suspeita que pode ser muito prolongada." Parte dos sitomas foi revertida.
Sem padrão
Segundo Oliveira, o SNC pode ser afetado por mecanismos diversos. Tanto pela infecção direta do vĂrus, que entra no cérebro pelo trajeto do nervo do bulbo olfatório, quanto pela corrente sanguĂnea. Uma vez instalado, o micro-organismo pode provocar diretamente os danos, mas hĂĄ outros meios — alguns desconhecidos — pelos quais a covid-19 afeta o cérebro, como a resposta imunológica exagerada (a tempestade de citocinas) e trombos causados por coĂĄgulos.
Uma preocupação do infectologista do EmĂlio Ribas é que não hĂĄ um padrão claro da infecção no SNC. "As alterações são muito plurais. Tem paciente que vai apresentar fenômenos inflamatórios clĂĄssicos, outros, não. Alguns tĂȘm alteração na ressonância, no lĂquor; em outros, a ressonância é normal, o lĂquor é normal, mas eles tĂȘm os sintomas. O mecanismo pelo qual o vĂrus agride o sistema nervoso central não é claro. Possivelmente, são alterações microestruturais. Então, para estudĂĄ-las, temos de içar o anzol um pouco mais profundamente", observa.
TrĂȘs perguntas para
FlĂĄvio Guimarães da Fonseca, vice-presidente da Sociedade Brasileira de Virologia e pesquisador do CT Vacinas da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG).
É normal um coronavĂrus atingir tantos órgãos e sistemas?
Não, não é normal. Esse coronavĂrus tem uma particularidade. Tudo tem a ver com o tipo de receptor que ele usa para infectar uma célula, que é o ACE2. Esse é um receptor muito distribuĂdo em vĂĄrios tecidos diferentes, e, se o vĂrus tem acesso a esses vĂĄrios tecidos, acaba tendo a possibilidade de infectĂĄ-los. E ele parece capaz de infectar mesmo células que não tĂȘm o ACE2. Saiu um estudo pré-clĂnico da Unicamp mostrando que ele é capaz de infectar até linfócitos. É uma surpresa atrĂĄs da outra. Em princĂpio, eu diria que isso é completamente diferente do comportamento de outros vĂrus respiratórios. HĂĄ ainda o fato de que um vĂrus que causa uma desregulação inflamatória intensa. Então, às vezes vocĂȘ vĂȘ acometimento cardĂaco, renal, até na ausĂȘncia do vĂrus. Um subproduto da superinflamação que acontece no indivĂduo infectado grave.
Então, as sequelas não estariam ligadas diretamente ao vĂrus, mas à inflamação causada pela resposta do sistema imunológico?
As duas coisas jĂĄ foram vistas. O vĂrus é capaz de infectar células além daquelas do sistema respiratório, desde que tenham esse receptor ACE2, e também pode causar a falĂȘncia de outros órgãos por uma desregulação inflamatória. É o que acontece, por exemplo, na dengue grave. Existem outros vĂrus que causam fenômenos semelhantes, a chamada tempestade de citocinas, uma hiperinflamação do organismo. A presença desses mĂșltiplos fatores inflamatórios acaba causando sequelas em outros órgãos, além dos afetados diretamente pelo vĂrus.
Apesar de ser uma doença recente, é possĂvel imaginar que, em alguns casos, a covid se torne crônica?
Eu não diria crônica, mas uma infecção prolongada. JĂĄ existem alguns indĂcios de que algumas pessoas podem ficar infectadas por um perĂodo muito longo, acima de 50 dias. A gente ainda não entende o mecanismo que gera essa infecção prolongada, como que o vĂrus se mantém sem ser eliminado pela resposta imune em pessoas saudĂĄveis do ponto de vista imunológico. Mas existe essa possibilidade. É diferente de uma doença crônica, permanente. A gente ainda não tem indĂcios de cronificação com o Sars-CoV-2, tem de infecção prolongada. (PO)
Correio Braziliense