O estudo da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) para vacinação em massa de pessoas entre 18 e 34 anos com a vacina AstraZeneca e testagem em grande escala da população do conjunto de favelas da Maré, que será feito de 29 de julho a 1º de agosto, é um desdobramento de diversas ações de mobilização social implementadas na comunidade desde junho do ano passado pelo projeto Conexão Saúde-De Olho na Covid. O projeto, que é referência no combate à pandemia em territórios de favelas e oferece gratuitamente serviços de testagem, telessaúde e apoio no isolamento domiciliar a pessoas com a doença, foi fundamental para o avanço da pesquisa entre os moradores da Maré.
Com a experiência Conexão Saúde, que reúne a Fiocruz, SAS Brasil, Redes da Maré, Dados do Bem, Conselho Comunitário de Manguinhos e União Rio, foram realizados mais de 27 mil testes diagnósticos, entre sorologia e PCR; 10,5 mil consultas de telessaúde, acompanhamento e apoio para o isolamento domiciliar de mais de mil famílias com pessoas que testaram positivo para covid-19 e ainda diversas ações de comunicação territorial. “O estudo [de vacinação em massa] vai tirar fotografias, mas o acompanhamento das variantes já está ocorrendo de algum modo” e, no próximo mês, será possível ter resultados, adiantou o assessor de relações interinstitucionais e médico sanitarista da Fiocruz Valcler Rangel, em entrevista à Agência Brasil.
Para Rangel, a mobilização de diversos parceiros, que se envolveram desde o início no projeto, permitiu integrar a atenção básica de maneira sistêmica ao enfrentamento da pandemia na região. Segundo o médico, o impacto foi sentido no controle da pandemia com a redução de 61% da mortalidade nos primeiros 10 meses de implantação do projeto. Tudo isso, agora, vai ser reforçado com a vacinação em massa, o acompanhamento da sua efetividade na proteção dos moradores e a possibilidade de intensificar a vigilância genômica no território.
A campanha usará a vacina AstraZeneca, mas há pessoas na Maré que foram vacinadas com várias outras vacinas, ressaltou Rangel. Ele disse que o projeto vai olhar como, em uma população totalmente vacinada, sobretudo na faixa acima de 18 anos, é a proteção direta das vacinas e observar, inclusive, pessoas menores de 18 anos.
O estudo de vacinação em massa, que tem apoio da organização não governamental (ONG) Redes da Maré e da Secretaria Municipal de Saúde, pretende ser mais que um levantamento da efetividade direta do imunizante na proteção contra o vírus. Rangel citou, entre os objetivos da pesquisa, o monitoramento de eventos adversos, principalmente os casos mais graves; a observação de casos gerados por variantes, em especial a delta; e o acompanhamento da dinâmica da pandemia a partir da vacinação completa da população da região.
O trabalho prevê o controle das pessoas que testam negativo e têm sintomas e o acompanhamento, durante seis meses, de 2 mil famílias que já se vacinaram e também das que participarão da imunização em massa, informou.
Estudo inédito
O pesquisador Fernando Bozza, que coordena o trabalho, enfatizou que um estudo como este, em uma área com dimensão populacional superior à de 96% dos municípios do país, é algo único e vai permitir um mapeamento com características singulares. “Aspectos da doença em si, como a dinâmica de transmissão do vírus no território, a vigilância de suas variantes e o acompanhamento de possíveis efeitos adversos das vacinas serão outros pontos abordados pelo estudo, para além da efetividade da vacina, que é o foco principal”, afirmou.
Para a imunização em massa nos quatro dias, a prefeitura do Rio mobilizou também a subprefeitura do local, a Secretaria Municipal de Educação e as 45 escolas da Maré, para garantir a mais ampla cobertura vacinal. Estarão disponíveis 121 postos de vacinação, incluindo as sete unidades de saúde da comunidade e sedes de associações de moradores. O funcionamento será de quinta a sábado, das 8h às 17h. No domingo, o atendimento será até as 12h.
Pelo menos 1,6 mil pessoas estão envolvidas, entre escribas, vacinadores e organizadores de fila. E a Secretaria Municipal de Saúde está captando muitos voluntários, principalmente profissionais de saúde, que se deslocarão de outras unidades para trabalhar nestes dias lá, disse Rangel.
Ele destacou que a campanha buscará evitar aglomerações e acrescentou: “tem que ter SUS [Sistema Único de Saúde], vacina, mobilização comunitária e ciência. Sem esses quatro elementos, a gente não conseguiria fazer isso e ter sucesso nesse grande aprendizado.”
A meta é antecipar a vacinação de 31 mil pessoas. Junto com as demais faixas etárias, que já tinham recebido a vacina conforme o calendário do município, essas pessoas passam a ser monitoradas pelos grupos de pesquisa. A efetividade da vacina vai levar em consideração os critérios de idade, sexo tipo de imunizante ministrado, tempo de infecção após a vacinação, tempo até a segunda dose e ocorrência de casos graves e prevenção de óbitos.
Nos dois primeiros dias, serão imunizados adultos jovens entre 18 e 34 anos e, no sábado e domingo seguintes, pessoas de outras faixas de idade ainda não vacinadas, e receberão a segunda dose os que estiverem com o calendário previsto para estes dias. Rangel mencionou ainda a preocupação com as pessoas que não estão voltando para tomar a segunda dose. A Fiocruz está avaliando qual é esse percentual. O médico apontou como fatores que levam a esse comportamento a divulgação de fake news e a falta de comunicação adequada sobre a importância da imunização completa.
Embora não sejam parte do público-alvo, crianças e adolescentes também integram a pesquisa. “Queremos entender se a vacinação em massa da população adulta inibe a circulação do vírus de forma a proteger também as crianças e os adolescentes”, explicou o coordenador Bozza.
“Não é qualquer lugar do mundo com uma população de 140 mil moradores de favela, que tem a capacidade de rastreamento e testagem, como a gente implementou na Maré, e a capacidade de mobilização comunitária como temos ali. Na verdade, podemos considerar que é um estudo inédito, por conta das peculiaridades que tem ali e por ser uma região urbana, de muita circulação, de muita violência e de ação da família que volta a se organizar agora. Então, a troca de informações com multipesquisadores vai ser fundamental para entendermos essa pandemia que ainda não terminou, e tem ainda muita coisa para fazer até nos livrarmos da covid”, afirmou o pesquisador da Fiocruz. Segundo ele, será criado um grande banco de dados com as informações da região.
Adesão
A mobilização para adesão dos moradores à vacinação em massa e ao estudo conduzido pela Fiocruz é liderada pela Redes da Maré, que atua há mais de 20 anos na comunidade e também tem feito a articulação de outros atores como associações de moradores, influenciadores, comunicadores populares e lideranças para informar e esclarecer os moradores da região sobre a importância das ações.
Durante a campanha, mais de 500 pessoas, entre articuladores de campo e voluntários, estarão envolvidas na logística de mobilização e informação dos moradores. Para a diretora da Redes da Maré, Eliana Silva, este é um momento importante, não só de reconhecimento da potência do território e do trabalho realizado pela ONG, mas também do estabelecimento de direitos, de forma republicana, para os moradores de favelas. “A parceria com instituições de diferentes níveis é um caminho concreto para reverter os danos causados pela pandemia e para a implementação de políticas públicas que respondam aos desafios estruturais que vivenciamos no território”, completou.
A coordenadora da Redes da Maré e integrante do Comitê Gestor do projeto Conexão Saúde, Luna Arouca, considerou positiva a adesão à iniciativa, inclusive com a participação de influenciadores digitais. Para Luana, os resultados da pesquisa servirão de referência para outras comunidades. “É importante o retorno. A partir disso, a gente consegue criar outras iniciativas que passam da potência desse encontro entre moradores, organizações, instituições e poder público”, afirmou em entrevista à Agência Brasil.
Luna destacou que a Maré tem uma estrutura importante de atenção primária com sete unidades de saúde da família, que trabalham com ações de vigilância. O acompanhamento mostra que, em campanhas que necessitam de duas doses, como a da covid-19, há dificuldade das pessoas voltarem para a segunda dose, o que se acentua com as fake news e o medo que alguns têm da vacina. Ela disse que seria bom se, junto com a campanha de vacinação em massa, fosse feita também uma mobilização para que as pessoas que deveriam ter tomado a segunda dose voltem para finalizar a imunização.
AgĂȘncia Brasil