A diretora e atriz Liliane Rovaris participa de uma montagem a partir de Crime e Castigo - Liliane Rovaris/Direitos reservados
Na montagem Crime e Castigo, 11:45 – um Recorte, em uma produção com o Coletivo de Arte Áreas, a artista mescla o texto de Dostoiévski com um olhar particular e afetuoso para o percurso que a fez descortinar o autor. Inclusive, após perder os pais. O luto a fez percorrer os olhos para um livro parado na estante. Durante a pandemia, encenou uma versão online. No presencial, vai acrescentar até trilha de David Bowie como um diálogo com uma livre interpretação para o personagem Rasconikov (protagonista de Crime e Castigo). O 11:45 do título refere-se à passagem bíblica sobre a ressurreição de Lázaro - Capítulo 11, Versículo 1 a 45 do livro de João. O personagem principal pede, na obra, que Sônia (personagem que se prostitui para salvar a família) leia esse trecho para ele.
Confira trecho da apresentação online divulgada para a Agência Brasil
“Não acho difícil a leitura. É como um novelão”, afirma Liliane.
A pesquisadora contextualiza que a obra dele não deve ser vista apenas sob a ótica da fé ortodoxa em contraposição ao racionalismo. “Se Deus está morto, tudo seria permitido. Assim, eu não me responsabilizo por nada e perco a conexão com a vida”. A obra dele esmiúça esse tema e leva às últimas consequências essa premissa. “Se eu não tenho mais esse senso de ligação, de comunhão com todo, quais são as consequências disso?”
As obras apontariam, assim, as consequências da falta desse senso de responsabilidade e do perigo do individualismo exacerbado. O autor escreveu que a beleza salvará o mundo. “Mas não é a beleza da aparência. A beleza, para ele, estava ligada aos sentimentos. Assim ele resgata o sentimento de compaixão”, disse Liliane.
A compaixão nos textos, segundo os pesquisadores, aparece em contraposição ao sentimento utilitarista e frio. De toda forma, Liliane pesquisou no mestrado sobre Dostoiévski que existe um diálogo que não apresenta quem tem razão. “Ele deixa nos textos que cada um tem a sua razão. Claro que ele mostra os perigos de algumas razões. Isso é muito importante na obra dele. Manter esse mistério do ser humano. Para o trabalho do ator é muito bom porque você tem que estar numa escuta para outras percepções também”.
Retrato de Dostoiévski - Constantin Shapiro/Domínio Publico
Sertão de Dostoiévski
O professor Leonardo Guelman pontua também que o autor traz pensamentos sobre as estruturas da sociedade, mas trazidas como perguntas. O pesquisador ainda traça paralelos com as estruturas de Grande Sertão: Veredas, do escritor brasileiro João Guimarães Rosa.
“Com certeza, todo clássico lê o outro clássico. Dostoiévski tem uma universalidade, mas ao mesmo tempo não é uma universalidade abstrata. É uma universalidade concreta. Ele traz a exuberância das vozes dos excluídos, dos humilhados e ofendidos. Ao mesmo tempo, assim se faz essa busca de uma interioridade. O Guimarães também traz essa teatralidade do mundo”.
Só que não é o “sertão” das estepes russas, mas brasileiro. “Ali se dá a aventura humana, o embate do existir e do amor. A gente sabe que a grande questão da obra de Guimarães Rosa também é essa. O Deus e o Diabo. Assim o sertão passa a ser um universo da existência humana nos seus contraditórios e de lutas”.
Por onde começar
Os pesquisadores concordam que a leitura trata de universos complexos, mas que podem ser acessados também por leitores que nunca tiveram acesso a uma obra do autor russo. Para Leonardo Guelman, o romance de estreia de Dostoiévski, Gente Pobre, pode ser um passaporte adequado para compreender o autor com uma evidente natureza social. É um romance epistolar com uma troca de cartas entre duas personagens: um homem de meia idade e uma jovem.
“Ele é um autor realista. A obra tem um efeito no leitor no sentido de uma redenção, de uma vontade de transformação. As obras do autor encantam os mais jovens porque tratam de sentimentos atemporais."
Agência Brasil